quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma boa senhora que não pôde escolher o seu emprego



Uma boa senhora que não pôde escolher o seu emprego


Tenho uns poucos relógios meio vagabundos. Todos estão sempre parados. Nunca me lembro de trocar a bateria. Não é de propósito, eu esqueço mesmo. E na verdade não vejo o menor sentido em ficar olhando para o pulso como uma psicótica, vigiando as horas como se a foice viesse me ceifar a qualquer momento.

Não, não tenho medo da morte. Nunca tive. Engraçado isso. Tenho medo de outras coisas. Tenho medo de ter diarréia na rua, do meu dente quebrar, de ficar mais míope, tenho medo da minha avó cair e se machucar e eu não ouvir por ela me chamando, tenho medo de não ter filhos, tenho medo de ficar uma velha gorda, baranga, hipertensa e diabética e cheia de dor nos joelhos, medo de ter que morar na Pavuna, medo da polícia, medo do meu peito cair, medo da minha barriga nunca mais sumir, mas da morte - não. Essa nunca me assustou, talvez por eu ter conhecido essa senhora desde muito pequena. Eu sempre soube que ela viria um dia, por isso vivo de portas abertas, sem medo de que ela venha, mas também sem fazer festa pra ela.

Falar sobre a morte sempre é constrangedor, mas nem sempre ruim. Talvez porque a morte em si não seja ruim, quando acontece em seu tempo e quando sabemos que, acima de qualquer dor, ausência ou perplexidade existe a certeza inabalável de um reencontro “em um outro nível de vínculo”, parafraseando Caetano Veloso em sua música “Tempo, tempo, tempo”.

O problema é que nós acostumamos com tudo, menos com a visita dela. Nem que seja para cessar o sofrimento de quem amamos, nem que seja para nos dar uma vida melhor em outro lugar. É assim desde os primórdios da humanidade, desde quando o mundo é mundo e as primeiras civilizações choravam seus mortos. Ninguém quer dizer “adeus” a quem ama. Mas porque dizemos “adeus” se podemos dizer “até breve”?

Há quatro anos eu disse “até breve” para o homem que mais amei na vida. A tristeza não era pela morte; era pela saudade. O corpo inanimado já não me dizia mais nada; eu sentia falta do seu espírito, da sua presença, da sua voz e da sua ranhetice. Já não me importava com o vento frio em seu velório, as vozes murmurantes, as mãos que me tocavam. Eu só queria segurar as mãos dele, não pelo desespero papagaiado de não poder mais ver, mas sim pela ternura imensa na qual eu estava submersa naquele momento. O momento de dizer “até breve”, mas sem saber a data exata do “breve”. O momento de aprender a conviver com a ausência e as lembranças, sempre tão boas, ternas e alegres. O momento de ver novamente a senhora, ali ao lado de seu corpo frio, velando por ele. Uma boa senhora que nada fez a não ser o seu serviço, obedecendo às ordens de quem a todos ama e quem a todos chama, um dia, nessa vida fugaz.

São quatro anos sem vê-lo. Quatro anos sem ouvir aquela voz preguiçosa perguntando se tinha café fresquinho ou aumentando o som do telejornal quando todas nós resolvíamos conversar junto com William Bonner e Fátima Bernardes. E o tempo foi passando assim, como um raio, um trovão, e ao mesmo tempo se arrastando como uma lesma, fazendo a saudade crescer como massa de pizza, fazendo o olho rir e chorar...

Uma noite jurei que tinha escutado seu riso no apartamento dele. Estava sozinha, o apartamento também sozinho, entrei e liguei a televisão e então...quase acreditei que ele estava rindo pra mim (ou de mim?). Meu coração se encheu de um sentimento ambíguo, amedrontado e ao mesmo tempo feliz. Quis chorar e quis rir, quis correr e abraçá-lo, mas era apenas ela, a televisão, me trazendo à realidade da saudade, uma saudade legal, que não faz sofrer nem desesperar, mas que faz a gente acreditar e esperar por um tempo diferente, um lugar diferente, onde tudo será diferente, mas todos seremos iguais.

Não, a boa senhora não me assusta. Ela vem quando precisa vir e faz o que tem que fazer sem ter que dar explicações. Ela leva quando tem que levar, e não creio, nunca acreditei que ela fosse má.
Ela apenas não pôde escolher o trabalho dela.

Saudade, vô.

4 comentários:

  1. Vivi...

    Lindo texto, tocante ao extremo, eu que jah nem ando chorona, to aqui enxugando as lágrimas.

    Bjks

    Nana Lopes

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  2. Bela homenagem,palavras tao bem escritas, e um inevitável nó na garganta. Sim Vivi, será sempre um até breve, e como disse a saudade deixada pela "velha senhora" é amenizada e transformada em doce lembrança pelo Senhor do destino, o tempo.
    Parabens pela intensidade e beleza desta homenagem, a tao grande homem. bjus

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  3. Amiga, você é uma pessoa sem papas na língua e com a mente inspirada, você escrve o que é: essa pessoa autêntica, transparente engraçada e muito profunda. Te adoro!!!

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  4. Com certeza, seu avô estva perto de você, mostrando que onde ele estiver ele está feliz.

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