quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Tato, Tatinho






Tato


Um dia, um dia de verdade, desses que chegam com gosto de novalgina e jiló frito, nuvens obesas e cinzentas no céu e dor de joelho ralado, ela foi embora. Um dia, sem eu acreditar, eu a vi indo de vez. Ela que fazia rosquinhas de nata e bolo de aipim, e dizia que o b vinha antes de “bunda” e o p vinha antes de “pomba” quando eu fazia dever de casa, ela que de vez em quando me chamava de burralda e logo depois batia Nescau com leite, ela que me ensinou a amá-la, encontrou seu amor e foi embora. Assim, sem mais nem menos. Disse que ía e foi. E foi-se minha Tato. E foi-se mais um pedaço de mim e do que ela me ensinou.


Tato chegou na minha vida quando a própria vida chegou até mim. Eu tinha poucos meses de nascida quando ela já me dava banho frio no tanque até meus lábios de bebê ficarem roxos; e quando aos sete meses eu disse “Tato, Tatinho”, ela não era mais Cláudia Antunes, e sim Tato, Tatinho.


Tato cuidou de mim até eu completar dez anos. Tato cuidou de mim até eu fazer 32. Tato vai cuidar de mim até eu fazer 98. Certas coisas nunca mudam. Certas pessoas nunca vão, mesmo indo. E todo dia a gente descobre que elas não foram. E descobrindo isso, a gente deduz e acredita que elas ainda estão com a gente. E mesmo assim a gente sente saudade de quem indo, nunca foi.


Vinte e dois anos se passaram desde que Tato foi sem ir. Tato ficou. Tato indo ficou cada dia mais presente na minha vida. Ficou na pracinha de São Domingos esperando eu descer daquele brinquedo insuportável que todas as crianças gostam, aquele de ferro em que a gente entra por um quadrado no oeste e sai por outro no norte, e do qual quase todas as crianças, as menos espertas principalmente, sempre caem e abrem o queixo.


Tato ficou no portão da escola me esperando sair toda riscada de hidrocor, com várias queixas da professora na caderneta e um desejo incontrolável de chupar Dip´n´Link de cereja, só por causa do pozinho colorido que era ácido como o inferno e que mesmo assim eu adorava (talvez por ser ácido ou talvez por se parecer com o inferno, ou os dois).


Tato é assim como uma tatuagem de verdade. Marcada. Estimada. Querida. E todos os dias quando eu olho pra mim no espelho eu penso como é possível uma pessoa que foi nunca ter ido. Como é possível sentir saudade de quem está com você desde que você usava fraldas. Como é possível a saudade se o amor está ali? Ah, sim. A saudade é o amor que fica.


Tato é o amor que ficou.

Tato é a infância que nunca mais voltou.

Tato é a sala cheia de brinquedos e cheiro de leite fervendo, Yakult e bala boneco. Tato é cuscuz de tapioca e enfeites de argila. Tato é o lanche pronto na merendeira e o cabelo lavado e preso para ir à escola, e também é o castigo pela implicância com as minhas irmãs.


Tato é a tarde feliz enrolando brigadeiros para mais uma festinha de aniversário.

Tato é o dia da festa junina e os acenos da quadrilha. Tato são as fotos quadradas que ficaram coladas em cada espaço da alma de uma criança que teve que entender muito cedo que as pessoas precisam ir, mas que algumas, graças a Deus, mesmo indo, nunca vão de verdade.


Tato é minha saudade, minha infância, testemunha das minhas alegrias e das minhas tristezas, colo para a febre, puxão de orelha e bolo de banana.

Tato é papa de farinha para a dor de ouvido, Tato é a linha que puxou o dente de leite, Tato é a gargalhada alegre e a mão forte que empenava talheres, e hoje, Tato é pra mim um dia de céu azul, sol de outono e chuva de verão.

Obrigada, Tato. Obrigada por mesmo indo embora, nunca ter ido de verdade.

Vivi






“Onde estão os caretas, malucos, que contavam uma nova história, dizendo que o Filho do Homem viria para levá-los pra um outro lugar?” dizia, ainda nos anos 90, o pirado vocalista do Katsbarnea.

E hoje me faz pensar neles mesmos: nos “caretas, malucos, que contavam uma nova história...” E que um dia eu também fui uma careta, maluca, que contava a nova história sobre o Filho do Homem que VIRÁ levar tantos para um outro lugar. Porque, se Ele não vier, estamos TODOS PERDIDOS, para não dizer coisa pior. Absolutamente e irremediavelmente perdidos neste mundo tenebroso que, nunca saberei porquê, jaz no maligno.

A esperança me impulsiona a acreditar que a história dos caretas e malucos é verdade, e verdade maior não pode haver. Acreditar para sobreviver a um dia após o outro, um dia em que ligamos a TV e vemos destruição e morte, assassinato, revolta da natureza contra o mal que lhe faz o homem, a solidão de nossos próprios passos, crianças que perdem seus pais em meio a escombros, sangue e concreto, pais que perdem seus filhos inocentes para pedófilos, mentes doentes e perturbadas, drogas e a própria maldade que hoje faz planejar o fim de vidas que mal começaram.

Meu Deus! Será que um dia você virá mesmo encarnado em Cristo para redimir a Terra dessa loucura toda? Será que você vem para redimir a natureza, os que nunca ouviram falar sobre você, os que não conseguiram acreditar em você e até os que escolheram não acreditar em você? Até onde vai sua misericórdia, Deus? E como pode sua presença estar em todo o lugar, MESMO neste CAOS que é esse mundo? E mesmo nas criaturas que ignoram que existe algo mais nesta vida do que a própria vida?

Temo tanto em te perguntar, Deus. Se alguém me indagasse qual dom eu gostaria de ter, não escolheria nem o de cantar ou de saber fazer fortuna: eu simplesmente escolheria poder voltar atrás e seguir com os “caretas, malucos, que contavam a nova história”, pois assim eu jamais me esqueceria dela.