terça-feira, 22 de novembro de 2011


Nascente

Sua pequena mãozinha procura a minha. Encontra a minha. Segura a minha. Segurando a minha mão ela se sente segura...é tão pequena e frágil que parece que nasce junto com o sol todos os dias.

Sinto-me engravidar sozinha. Mas não aquela gravidez de barriga; essa gravidez vem lá do horizonte da alma, lá onde a gente não alcança, onde nenhum artista vê o concreto, muito menos o abstrato para pintar ou fotografar. A gravidez da alma é aquela que brota igual a nascente: ninguém segura, nem tronco de árvore, nem aterrando o rio, nem explodindo o mundo. E vai aumentando, crescendo, crescendo, parece que tomou hormônio do crescimento e vai tomando conta de todos os espaços da sua vida. Então a gente se descobre mãe. A gente se descobre amando outra vida, que não precisa nascer da sua barriga, mas que é sua, sua pequena vida, apenas esperando o momento certo para brilhar em algum dia em que, talvez, você menos espere. Essa pequena vida já era sua e você nem sabia; todas as noites em que sonhou com ela, em que imaginou como seria seu rosto, seu cabelo, seu olhar pra você; todos os momentos em que imaginou como seria estar no seu colo, sendo pequenininho ou já grandinho; ainda assim, ia querer seu colo, como não? As mães amáveis têm um dom natural: o de dar colo. Colo para o susto da noite, para a febre que não passa, para o joelho ralado, para as lembranças tristes, para a insegurança, para o medo do abandono, para o colo, somente; o colo onde a gente, que é filha, chora até ficar adulta (e principalmente quando fica adulta...); o colo onde a gente chora quando se separa de quem se ama, quando perde o emprego, quando sente saudade, quando simplesmente se quer colo e pronto.

A gestação da alma não é como qualquer gestação natural. Ela nasce de um lugar onde a gente não consegue ir, tão profundo é. Um lugar onde não se consegue chegar pelo caminho concreto e sólido, mas que se consegue sentir pela certeza genuína e clara. É como a nascente: borbulha, borbulha, e desde a superfície sabemos que ela está ali. Eu não sei o que é: se vem só de mim, se vem de Deus ou de alguma força que me faz amar e querer amar mais e mais alguém que nunca vi, e que não nasceu do meu útero, que não ouvi chorar, não vi o umbigo cair, e nem amamentei. Mas que certamente, em algum dia ensolarado ou noite enluarada, nasceu já procurando por mim. Em algum lugar me aguarda, em algum lugar acredita que estou chegando, estou descobrindo o caminho, estou fazendo e refazendo percursos, estou abrindo portas e janelas, trancando imbecilidades, molhando plantas e conhecendo trilhas até chegar até ele, pequeno ou crescido, branco ou negro, índio ou pardo, ou de qualquer outra cor que não conste em nenhuma certidão ou documento...apenas meu filho, o filho que eu não escolhi pela lei natural da vida, mas que a lei natural da vida escolheu pra mim. O filho que comecei a amar por uma razão tão transcendental que a minha própria razão não identifica: simplesmente ama, simplesmente me quebranta, me faz mulher inteira, me faz mulher bonita, me entrega gentilmente o direito de cuidar, de ver crescer, de amar e ensinar, de errar e aprender, de morrer de rir e de morrer de chorar.

Jogo por terra expectativas vãs. A minha gestação da alma é muito maior do que elas. O meu filho não é o que eu sonhei. O meu filho é o meu próprio sonho, sonho que não tem nada de ideal, não tem nada de perfeição, um sonho onde cabem todos os sentimentos do mundo. O meu filho é muito mais e muito diferente do que eu imaginei, porque ele é único, estrela solta nesta enorme constelação, e não apenas mais um neste mundo de meudeus.

Ele sabe que vou chegar na hora certa. É que eu ainda não conheço o caminho. E também não tenho medo do caminho. A nascente borbulha. O meu filho me espera em algum lugar na constelação. Eu não sei a cor dos olhos dele. Eu não sei a cor da pele dele, nem conheço seus medos. Mas sei que ele me espera. E sei que eu estou chegando.

Eu só queria embalar meu filho.


terça-feira, 21 de junho de 2011

Sonhos ficam dentro.

Planos saltam aos poros.

Gerar vida é criar a mesma.

Esperar por momentos certos demais é atingir o nunca.

E NUNCA é muito triste para um dicionário.

terça-feira, 1 de março de 2011




Uma visita da cor do açúcar


Ela chegou correndo, segurando balões de várias cores nas mãozinhas. Saiu de um carro, de onde ouvi um “bip” travando as portas. Não vi quem a havia trazido. A forma, que era de um adulto, se desfez em vulto. Não havia ninguém por perto. Era de noite, mas não muito tarde. Não conseguia ver seu rostinho, escondido entre tantos balões coloridos. Ela corria com passos apertados de quem tem perninhas curtas, e usava sapatos brancos, de verniz. Embora eu não conseguisse ver seu rosto naquele momento, eu sabia que ela estava muito feliz. Mais do que feliz: ela estava radiante, alegre, pronta para celebrar alguma coisa.


Por alguma razão que eu desconhecia, eu estava muito feliz também. Havia esperado aquela garotinha por tantos anos! E ela chegava assim, trazida por um adulto que era apenas um vulto e que desaparecia com o “bip” do travar de portas do carro de onde ela havia saído. Ela corria em minha direção, como se soubesse que eu a havia esperado por muitos anos. Vinha com a esperança de ser criada, amada, educada; a esperança de viver uma vida feliz, sem sequer imaginar a seriedade desta mesma vida e todos os momentos que vão, pouco a pouco, construindo a base em que vivemos até chegar o dia em que não precisaremos mais dela.

Eu corri até ela sem acreditar que enfim ela havia chegado. Então todos os anos não haviam sido em vão? Uma hora ela chegaria mesmo? Tão pequenininha e tão feliz? Continuei a correr, brincando com ela. Ela olhava para traz e sorria, mas ainda assim era impossível ver seu rosto. Uma leve cortina de névoa só me deixava ver a cor dos seus olhos e cabelos: castanhos claros. Tudo era tão enevoado. Observava, sim, nuances de um sorriso, e ouvia distante, como um eco esquecido, gargalhadas infantis que eram a melodia mais feliz que escutara até então.

Ela foi soltando um a um os balões de gás e, sem ainda me deixar ver seu rostinho, começou a subir na janela da antiga casa da bisavó Chiquita. Uma casa com a data de 1940 pintada na fachada, a esta altura já azul clarinho, caiado pelo tempo, pelos ventos nordeste e sudoeste.

Que levada esta menina! Ajudei-a em suas traquinagens, e, quando pude finalmente pegá-la em meu colo, ela se voltou para mim. A névoa que me impedia de vê-la com perfeição e foco tinha se esvaído como fumaça; ali estava ela, sorrindo com transparência e uma alegria tão genuína que comovia até a mais dura das cervizes. Tapei minha boca com a mão para não soltar um grito; o que vinha de dentro de mim era surpresa, susto, emoção, amor, alegria, vontade de chorar e de rir, uma gama de sentimentos que começavam a marejar meus olhos e fazer meu coração bater violentamente contra o meu peito. Ali estava ela...ela era eu. Pequena. Feliz. Um pouco misturada com os olhos e a cor castanho bem clarinho do cabelo de uma das minhas irmãs. Ela, que era eu, me abraçava com bracinhos macios e claros; seu sorriso de dentinhos de leite e olhinhos espertos penetravam os meus, estáticos diante do que estava vendo: eu estava segurando a mim mesma em meu colo.

Não passava de quatro anos aquela criança e já quanta história tinha em seus olhos! E seu sorriso! Que bálsamo! Quanta ternura! E quanto tempo eu havia esperado por ela! Que nome daria? Que nome daria a mim mesma? Ela estava ali, ninguém viria buscá-la. Ela não era de ninguém. Ninguém tinha a guarda daquela criança a não ser eu mesma. Eu tinha a guarda de mim e haveria de saber, daquele ponto em diante, por onde começar a ser mãe. Mãe de mim mesma. Mãe de uma criança que me sorria como um anjo e que não tinha a idéia de como este mundo jaz no maligno, mas de também como a vida pode ser boa se a olharmos com os olhos dela. Da criança. Que eu sabia que era eu mesma mas que não tinha nome, pois ao mesmo tempo que era, não era. Uma extensão...uma surpresa, uma piada de Deus? Que faria com aquela criança subindo em janelas e segurando-se em grades, vestida como uma princesinha? Havia sim um lacinho branco em seu cabelo liso e claro. Suas bochechas estavam coradas e tinha uma linda boquinha em forma de coração. Era esperta, inteligente e alegre. Assim como deveriam ser todas as crianças.

Eram quase seis horas da tarde quando acordei suada e sentindo um nó de marinheiro na garganta (nó de marinheiro ninguém desfaz). O silêncio sepulcral na casa me fez querer que aquilo tudo fosse verdade, eu queria dormir novamente e voltar ao mesmo sonho, conversar com ela, perguntar quem a tinha enviado, como tinha chegado até mim, se ficaria para sempre, se seria minha filhinha tão almejada, ou se seria minha mãe. Mãe de mim mesma. E ao mesmo tempo me perguntava se enfim eu havia pirado de vez.


Na verdade, eu já sabia o que aquilo significava. Ela não veio para ser minha filha. Veio para me ensinar a cuidar de mim mesma para que, um dia, eu possa cuidar de outra vida que sairá de dentro de mim ou não. Que sairá do meu útero ou de outra maternidade, ou de um orfanato, ou da rua. Veio me mostrar as cores alegres nos balões de gás, a pureza no sorriso de dentinhos de leite, a alegria no brilho dos olhos que mais pareciam duas amêndoas reluzentes.


Seu vestidinho branco, sapatos e meias da mesma cor, um lacinho também branco no cabelo. Tudo puro. Tudo cor de açúcar. A vida pode, sim, ser doce. Talvez não o mundo, mas a vida, sim.


Seu abraço era gostoso e delicado, e havia algo de eterno nele. Como se prometesse que nunca iria embora. Como se me amasse sem nenhuma outra intenção a não ser a pura verdade do amor simples, que não quer nada em troca. Ainda sinto seus bracinhos em torno do meu pescoço e me pergunto porque numa terça-feira de verão, em que eu deveria estar me ocupando de outras questões, enquanto meu texto CLAMA para ser insistentemente decorado, eu caio em um sono profundo e saio desta esfera carnal para uma muito mais além do que minha mente cria existir.


Sim, ainda na atmosfera do sonho, eu sei. Muitos podem dizer que foi apenas um sonho repleto de informações que recebo diariamente, como todo mundo. Foi um sonho, eu sei – um sonho, e não APENAS um sonho. E neste sonho, alguém me tocou. E me arrepio quando lembro que aquele pequeno alguém era eu mesma, soltando balões de gás, vestida de branco, correndo em direção a mim, à parte de mim adulta, intolerante, desanimada muitas vezes com a vida e com as dificuldades impostas por ela.

Levei meia hora para me recompor. Estava escuro e silencioso. Eu tinha vontade de chorar.
Desejei que ela estivesse ao meu lado.

Foi quando eu me dei conta de que ela já estava.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011