segunda-feira, 9 de agosto de 2010



Quando nunca é dia dos pais


Tem gente que nunca teve cama. Tem gente que nunca teve escola boa, brinquedos novos (nem velhos), doce na geladeira; tem gente até que nunca teve nem geladeira.


E tem gente que não teve mãe nem pai nem irmãos nem nada disso que nos faz ser quem somos, e também quem poderíamos, talvez, ter sido.


Tem de tudo no mundo; tem até o que não se tem.


Pensar em ter um pai é como pensar no Monte Olimpo. Existiu? É mito? Mito que explica a ligação da mãe com o filho e do filho com o filho até chegar à explicação da primeira civilização.


Outro dia eu parei pra pensar no que seria um pai. Qual sua função além de pagar e pagar e pagar. Eu não consigo terminar este texto porque não tenho conhecimento sobre o assunto; nem consigo colocar um ponto final porque eu queria conhecer esse assunto e perguntar para o meu (pai): Ué, cara, cadê você?


Já tem muito tempo que ele se foi. E aí, como a gente se acostuma com tudo mesmo, eu me acostumei a ser sem ele, a crescer sem ele, a não conversar com ele, a não entender porque teve que ser assim. Eu me acostumei com a lembrança em sépia de um homem magrinho e barbudo me pedindo um beijo na cama do hospital; e me lembrei em cores vívidas e saturadas de um homem barrigudo e engraçado chegando em casa com um monte de chocolates e cocadinhas da Bahia (e uma maleta preta cheia de papéis e coisas esquisitas).


Agora eu não sei muito bem o que lembrar.


Minto: lembro de uma noite fria em que o doido me colocou na grade da janela da sala e me cobriu com um cobertor de lã vermelha. Eu devia ter uns sete anos. Ficou ali comigo um tempão. Ou ele segurava a grade do terceiro andar ou a grade segurava nós dois. Só o que eu sabia de verdade era que eu não ía cair porque ele não ía deixar.


Tudo mentira.


Um dia a grade despencou, eu caí, todo mundo caiu. Todo mundo se machucou. Mas ele, pra onde foi? Estava salvo. Puta que pariu. Que poder é esse que tem a morte sobre uma família inteira? Voam estilhaços no berço dos bebês e nos brinquedos das crianças. Voam estilhaços nos traços adolescentes e no revirão da juventude. E ficam estilhaços no corpo maduro da menina que cresceu e que até hoje não conseguiu decifrar esse mistério, sendo assim devorada pela esfinge (decifra-me ou devoro-te) E paga-se até hoje a conta da terapia. E imagina-se até hoje em como teria sido se aquele que foi nunca tivesse ido.


- E se ele tivesse desaparecido como essas pessoas que saem pra comprar cigarro e não voltam nunca mais?


Não. Meu pai detestava cigarro.


- E se ele tivesse conhecido uma dançarina alemã e tivesse se mudado pra Munique?

Duvido que ele gostasse da comida dos alemães. E os alemães não são muito de dar gargalhadas.


- Mas e se ele tivesse outra família e morasse no Nordeste?

Hum. A mistura de calor e mosquito lhe era por demais odiosa.


- E se tudo fosse apenas um sonho que a gente tem quando come feijão com lingüiça antes de dormir?

Tem anos que parei de jantar.


- E se fosse efeito do Daime?

Nunca tive coragem...


- E se for apenas mais um dia dos pais em que eu não sei o que fazer nem pra onde ir?

Provável, baby.


Há alguns anos eu conheci uma menina de 13 cujo pai ela não via desde os oito. Então, a mãe dela, coitada, no meio de tanta ignorância religiosa, ensinava a menina dizer, quando perguntada:

- MEU PAI É DEUS.


E a mãe ouvia, orgulhosa, inflamada de mágoa e jubilosa por ter sido adotada por Deus, ela e a filha.


E eu desabava, pela menina. Que queria chorar, que queria ver o pai, que queria entender como Deus pode ser Pai se o pai dela, o pai físico dela não queria nem saber dela?

Então eu voltava pensando em como seria quando aquela menina crescesse e entendesse que por um lado Deus é Pai, e que por outro ela não tinha pai mesmo; e essa era a verdade, e pronto.


Sem dramas.


Faz o que quando não tem pai?


Faz o que eu faço: segue.


Sem dramas.


Quer pai?


Não tem.


Sem dramas.


Quer drama?


Tem, aos montes.


Só não tem pai mesmo.