segunda-feira, 14 de junho de 2010


O incrível dom de ser passageiro


Não. Não somos tão importantes. É ilusão pensar isso. Acho que o vento consegue ser mais importante que qualquer um de nós. A cada dia que uma criança nasce, alguém morre. Na proporção de um para um, ou mais, ou menos. A verdade é que sempre vamos, morrendo de mentira ou de verdade. Mas um dia, vamos. Vamos da vida de quem amamos, vamos da escola, da faculdade, vamos dos primeiros namoros, vamos das primeiras sentidas dores, das primeiras grandes e pequenas alegrias. Algumas vezes, vamos antes de quem nos viu nascer; em outras, vemos ir também.

Sim, vamos da vida de quem amamos. O cheiro na cama de quem adoramos será substituído por uma boa dose de amaciante de roupas e sabão em pó e um dia inteiro secando ao sol. As fotos - não se engane - as fotos serão guardadas gentilmente em uma caixa de um All Star antigo ou coladas em álbuns que nunca nos lembraremos de abrir. E quando vier a próxima mudança de casa, vamos descolar o durex da caixa com a ponta de uma tesoura para ver o que há ali dentro. Ah, sim. “A teus pés”, de Ana Cristina César, e fotos amareladas pela saudade que teve Alzheimer.

Quem é essa menina banguela aqui? E essa de franjinha? Essa menininha vestida de Mulher Maravilha? E esse pai que existiu? Esse pai que um dia amou essa menininha, que comprou para ela essa fantasia de heroína, que a levou à escola, à festa junina, que se esqueceu de assinar seu dever de casa e que esqueceu que pais não podem morrer??? Não, pais, não morram enquanto seus filhos não tiverem mais de 25 anos! Não deixem que os vejam dentro de um caixão! Mesmo que não sejamos tão importantes, a morte é. O abandono é. Tudo que somos também está ali. A vida e a morte. A vida contempla a morte, mas a morte não pode olhar a vida chorar, porque a morte é cega, surda e muda. Faltam-lhe os sentidos. A morte se esqueceu da vida, porque essa também não é o centro do universo nem o umbigo de ninguém.

Não é tão difícil entender. A vida é um sopro, uma ilusão, um delírio, uma febre, uma epidemia de prazer e de sofrimento, de orgasmo e de sepultamentos. A vida é isso e mais nada. Um dia, acaba. Como acabamos também para quem um dia nos amou. Para quem amamos. Um dia vamos acabar para quem amamos, e tudo que restou ficará guardado numa caixa de papelão. E talvez, daqui a dez ou vinte anos, alguém curioso abrirá essa caixa e encontrará ali registros de tudo que ficou marcado: sorrisos, dias de sol, dias de chuva, fantasias, festas, casamentos, nascimentos, aniversários, formaturas, alianças e “eu prometo”, cartas escritas à mão, poesias e sonetos. Sonetos de amor e de despedidas...

Ah, não, não somos tão importantes assim! Levar tão a sério o que somos, o que fomos, o que seremos...tudo vai acabar em cinzas, pó de gente, lágrimas dos vivos, boas vindas dos mortos.

E a vida continuará seguindo com o dom que Deus nos deu: o de sermos passageiros, mas incansáveis na luta de nos fazermos presentes, eternos como a cicatriz de um acidente de moto, como o cheiro do bolo saindo do forno que nos lembra uma avó querida, como o pudim de claras com limão que traz de volta a gargalhada do pai que há muito se foi; como o retrato amarelado da criança que fomos, e da criança que um dia sairá de dentro de nós.
O incrível dom de sermos passageiros.




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2 comentários:

  1. Vivi a profundidade de seu texto, mexe, revira e também afaga...
    Bjs e tudo mais pra você. Jaque

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  2. Vi, mais um belo texto!! Como sempre, chorar, sorrir, repensar, ponderar, refletir intensamente, QUESTIONAR, são algumas das sensações que tenho, quando leio 95% daquilo que escreve. Virtude de poucos, tenha certeza. Esse é o seu caminho!!! Sempre disse isso. Como Alice Kita, agradeço poder participar dessa fonte inesgotável de inteligência e desse senso incrível de perceber os pequenos e fundamentais DETALHES, de tudo aquilo que vê e vive.
    E mais, a escolha da foto, eu diria que foi perfeita, pq aquela criança que fomos e nunca deixaremos de ser e que muitos idiotamente teimam em não deixar viver, ela esta lá, em sua plenitude, nunca morre, por mais amarelada que esteja a foto. ADOREI, PERFEITA A ESCOLHA. E VC ESTA LÁ VIVICA. EM SUA PLENITUDE.
    Desejo SUCESSO!!!! Muito... Para que muita gente se delicie com seus textos. Gd bj. E parabéns, mais uma vez. rs.Tá ficando redundante. Mas é bommmmmmmmmm.
    PS. não consegui ouvir vinicius, mas chegando em casa farei, com .

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