terça-feira, 20 de outubro de 2009


Angela e a torta de chocolate: ódio à Jolie

Eram nove e meia da noite de um sábado, um dia frio de outono, e Ângela resolvera ir ao cinema. Tinha ido assistir a um filme cuja atriz principal era Angelina Jolie, que estava para ver há tempos, mas nunca tinha coragem. A crítica era super favorável, mas havia também aquelas pessoas chatinhas que vão logo arrasando com a história, com o diretor, com os atores etc. Mesmo sem companhia (poderia ser melhor assim), ela escolheu uma sessão que provavelmente estaria menos cheia, assim haveria menos ruídos de papel de balas, amendoim, beijos e outras faltas de educação que geralmente são cometidas pelos espectadores brasileiros (não que o beijo seja falta de educação, mas cá entre nós...).

Chegou um pouco antes da hora e foi até o café do cinema. Seus enormes olhos castanhos foram até uma boleira de vidro reluzente, contendo uma torta de chocolate com cobertura ganache e amêndoas filetadas que lhe dava vontade de ajoelhar e agradecer a Deus pelo dom da visão, tamanha a contemplação de sua alma gorda por aquela iguaria que mais parecia uma jóia bizantina. Olhou o relógio: faltavam ainda quinze minutos para o filme começar; o suficiente para pedir um pedaço do bolo, uma xícara enorme de capuccino com uma dose extra de creme e, com isso, matar o tempo e matar também a sua última calça número 44, que ela vinha usando bem apertada, sufocando a barriga e fazendo-a parecer um casulo, o que ela tentava disfarçar com suas batas pretas de viscolycra que comprava de uma amiga do trabalho, que trazia da Rua Teresa, em Petrópolis, e revendia.

Com armas à mão, sentou-se em frente ao café e pensou, com sua cabeça gorda e dependente, que “só esse pedacinho” não iria engordar. Afinal, ela não havia almoçado aquele pasto verdejante que Mislene, sua secretária-diarista-ouvido-de-penico havia deixado pronto no dia anterior: uma bela salada verde com dois tipos de alface, rúcula, agrião e endívias, e alguns pedacinhos de queijo branco temperado com orégano para que ela não se sentisse a própria vaca holandesa ruminando em algum pasto brilhante, distante da realidade que a atormentava: perder 16 kg, todos ganhos com orgias hedonistas de açúcar, massa e destilados e o sedentarismo de um jabuti.

Com uma forte oração, afastou de sua mente a visão maligna da salada e, como se o mundo fosse acabar em trinta segundos, enfiou o garfo na torta, que viu afundando naquele ganache glorioso, entrando pela massa densa e macia, e trouxe à boca triunfantemente, alegremente, como alguém que declara vitória sobre o próprio desejo, cedendo a ele sem culpa ou autocrítica.

O sabor forte do chocolate amargo fazia com que esquecesse suas próprias amarguras; aquilo era bom demais! Melhor que orgasmos múltiplos, melhor que sexo selvagem, melhor que o que quer que fosse. Perto daquilo, o ponto G era uma formiguinha rindo de si mesma. Em poucos minutos, não restava nada no prato, além da lembrança borrada do creme que havia ficado na louça.

Era hora do filme. Ângela finalmente entrou, procurando uma poltrona mais para trás, já que ía abrir mesmo o zíper da última calça 44 e sentir seus culotes inchando como balões de aniversário. Se era para acontecer, que sentisse tudo isso sozinha, agora sim, castigando-se duramente, pensando na salada que havia ficado na geladeira, intocada, em vários tons de verde; nas frutas coloridas (que ela bem que preferia que fossem enormes jujubas) das prateleiras, na água-de-coco e no frango grelhado e anêmico, tudo arrumado com tanto carinho por Mislene, que também já não agüentava mais ouvir a patroa reclamar que estava obesa, gritando consigo mesma no espelho como se fossem acessos reais de esquizofrenia: “Gorda! Sua bunda está do tamanho de um atabaque! Olha essa barriga! Olha esse quadril! Vai passar a vida inteira usando viscolycra e cintas calorentas por baixo dos vestidos!”

Era nisso tudo que pensava enquanto rodavam os trailers: em todos os seus jeans dentro do armário, já caducando, esperando a apocalíptica hora de serem novamente vestidos; nos seus biquines e saias que há algum tempo resolveram se ausentar e em toda a sua lingerie que...ah, deixa pra lá.

Começou o filme. Na tela imensa, Angelina Jolie apareceu com sua boca mais imensa ainda, olhos de gata, corpo esculpido por Michelangelo, abrindo uma latinha de diet coke.

Ângela sentiu o ódio percorrendo-lhe a espinha. Sabia que nunca, jamais, mesmo que fizesse uma dieta de restrição de QUALQUER COISA, teria um corpo como aquele. Mesmo que corresse todos os dias da Lagoa até o Egito, fazendo um esforço sobrenatural, nunca, jamais teria aquela barriga lisa e dura como um piso de mármore nem aquela bunda empinada como a silhueta do Pão-de-Açúcar.

Com os dentes rangendo de raiva e contrariando a educação em que acreditava e defendia ferozmente, abriu a bolsa e sacou de dentro dela, como um mágico faz com um coelho dentro de uma cartola, um pacote bem safado de batatas fritas, que comeu como se vestisse 36 e vivesse em dia de domingo no posto 9 de Ipanema. E depois da batata, jujuba. E finalmente um chicletinho para fazer a digestão.

Acabou o filme. Jolie voltou para Hollywood, para a terra onde ninguém come, e Ângela voou para o estacionamento do shopping, entrou em seu carro e voltou para o seu apartamento de dois quartos, terra onde se come de tudo. Abriu a geladeira, viu a salada florescendo, lembrou do corpo escultural de Jolie e decidiu: tudo bem. É quase segunda-feira. Até lá, a salada não vai queimar. Pegou a lata de doce-de-leite e foi assistir ao Jô.

7 comentários:

  1. Maravilhoso, nunca ri tanto...

    Parabéns amiga....

    Bjs!

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  2. Você não errou o nome da personagem, não?

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  3. HAHAHAHAHHAHAHAHAH!!!!
    se essa não é a história de todas nós....
    adorei! e a Angela (q de "angel" nao tem nada) representa a nossa alma feliz e culpada, qdo ainda nao conseguimos entender q, melhor q a barriga e a bunda da angelina, a boca é, com certeza, a inspiraçao maior de muitas fantasias - tanto pra quem a ve qto pra ela mesma (e pra nós tbm!)

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  4. Mt bom!! A história passou como um filme na minha cabeça!! Mas, em quem vc terá se inspirado, hein?? hehehe...Me diverti horrores!!

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  5. haha! parece com alguém.... vem ca, qual é o seu número de calça, hein?
    muito bom!!!!!!

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  6. Vivi amei, ri muito.
    Bjs,
    Lú Lage

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